Passando o olho pela História da humanidade, é frequente encontrarmos circunstâncias nas quais uma figura de autoridade, cega pelo próprio ego e ambição, abusa do poder que lhe foi atribuído. Visando perpetuar seu domínio sobre os outros e realizar objetivos escusos, tal figura flerta com um regime ditatorial capaz de infligir sofrimentos indizíveis às pessoas.
A solução que Monkey D. Luffy ofereceria para um impasse de tal natureza é direta e reta: um soco muito bem dado na fuça do desgraçado que está avacalhando dessa forma. Uma porrada capaz de abalar as estruturas não apenas do seu alvo, mas de tudo aquilo que ele representa.
O mangá de One Piece – e consequentemente também o anime – está recheado de símbolos e temas que vão se repetindo e amadurecendo no decorrer dos seus mais de mil capítulos. Alguns desses temas estão listados no discurso de Gol D. Roger que abre o capítulo 100: Propósitos herdados, sonhos de uma pessoa e as mudanças de uma era são conceitos fortes presentes na maior parte dos arcos e flashbacks da história. Outros são mais sutis e alguns estão totalmente abertos para a interpretação de cada um. Quero compartilhar aqui minha visão sobre um símbolo que entendo como recorrente e relevante na narrativa e no tipo de mensagem que o autor, Eiichiro Oda, quer transmitir: o Soco Subversivo™.
O Soco Subversivo™ não é qualquer soco. Não é só mais um dos muitos golpes que são trocados em toda luta do mangá. Ele depende de contexto. É o momento exato em que o Luffy quebra na porrada algum paradigma, uma regra supostamente intransponível que foi imposta por alguma figura que está exercendo ali o papel de opressora.
Geralmente funciona assim: o bando do Chapéu de Palha chega em uma ilha onde alguém está fazendo um uso perverso do seu poder, impondo às pessoas uma condição de submissão e medo. O vilão da vez é considerado intocável, dado que uma ofensa contra ele significaria retaliação contra a população local, vulnerável e fragilizada. A regra não escrita de que não se deve confrontar a autoridade da região é quebrada por Luffy com um desafio direto, na maioria das vezes via porrada mesmo, que coloca ele e seus amigos no centro do conflito e determina a dinâmica das lutas na reta final do arco.
Essa ideia de antagonista intocável é introduzida bem cedo na história. Podemos notar traços disso já no confronto contra a pirata Alvida, uma figura notavelmente narcisista e abusiva. Mas é no arco seguinte, do capitão Morgan, que o conceito estreia em uma versão mais completa.
Morgan é um capitão da Marinha que fez de refém a vila que sua base deveria proteger, cobrando “doações” como demonstrações de gratidão e adoração do povo. Qualquer desrespeito à figura dele é passível de punição severa ou execução. Seu filho, Helmeppo, é o típico playboy mimado que usa da influência da imagem do pai pra fazer o que bem entender pela vila, menosprezando e humilhando todos à sua volta.
Pelo contexto todo entende-se que desrespeitar Helmeppo significa desafiar diretamente a autoridade do capitão Morgan, comprando uma treta com toda a força da base da Marinha da ilha. Pouca diferença faz que o próprio Morgan não veja dessa forma e esteja cagando para o próprio filho, algo que só descobriremos depois. O importante é que o público, acompanhando a história do ponto de vista de quem acabou de chegar na ilha, compreenda que ofender Helmeppo representa uma aposta alta e arriscada.
Quando Luffy descobre que Helmeppo mentiu em uma promessa de honra para o Zoro e pretende executá-lo publicamente para servir de exemplo à vila, sua reação imediata é abrir oficialmente os trabalhos do Soco Subversivo™ na história.
Essa cena encerra o capítulo 3 do mangá. É um gancho – no sentido de cliffhanger, porque o soco em si é um cruzado – que foi pensado para nos fazer pensar “putz, agora fodeu”, escalando as expectativas para o capítulo da semana seguinte.
Mas, mais do que isso, ela traz uma informação importante sobre o protagonista, considerando que, nesse ponto da história, ainda estamos começando a conhecê-lo. O soco nos diz que, para o Luffy, certos valores são inegociáveis e simplesmente não importa se o que está no seu caminho é um capitão da Marinha, um shichibukai, o Governo Mundial ou até mesmo Deus. Fez merda com pessoas inocentes e/ou machucou um amigo querido? Vai tomar um murro na cara e pronto, e pode chamar quem quiser que ele encara do mesmo jeito. É uma solução bastante objetiva que combina não apenas com a simplicidade e a retidão de raciocínio do personagem, mas também com o que se espera de um shonen de porrada (lê-se, porrada).
Essa dinâmica da autoridade e subversão é introduzida ainda de forma bem simples nesse arco do Morgan, mas vai ficando cada vez mais complexa e profunda conforme a história avança e o mundo de One Piece se desenvolve. Dá pra sentir muito bem essa evolução pegando um exemplo de 500 capítulos à frente: o incidente com os Dragões Celestiais em Sabaody.
Com a trama já muito melhor estabelecida, nesse ponto estamos cientes de que houve um período da história do mundo de One Piece que teve seus registros apagados, o chamado Século Perdido. Este período termina exatamente com a fundação do Governo Mundial, 800 anos antes dos eventos atuais da trama. Os tais Dragões Celestiais são descendentes dos reis fundadores de oito séculos atrás. São nobres que se recusam a respirar o mesmo ar que as pessoas normais, usando bolhas como capacetes, e colecionam escravos como se fossem figurinhas de um álbum da Copa. E são literalmente intocáveis: na presença deles qualquer pessoa “normal” deve se ajoelhar, e qualquer forma de agressão fará com que um dos três almirantes, os integrantes mais absurdamente poderosos da Marinha, seja convocado para punir pessoalmente o infrator.
O arquipélago de Sabaody também carrega um contexto muito mais denso e profundo do que aqueles vistos nos primeiros arcos do mangá. Há uma dicotomia entre a posição dos Dragões Celestiais, cuja morada é a supostamente sagrada terra de Mary Geoise no topo da Red Line, e a dos Homens-Peixe, que vivem no fundo do mar e sofrem extremo preconceito por parte dos humanos. Sabaody fica exatamente entre Mary Geoise e a Ilha dos Homens-Peixe, sendo consequentemente centro da tensão, da xenofobia e da violência que permeiam essas relações há séculos.
É no meio desse caldeirão histórico e sociológico que a sereia Kamy, amiga e então acompanhante do bando do Chapéu de Palha, é sequestrada por mercenários e vendida a um leilão de escravos do arquipélago que costuma receber Dragões Celestiais entre seus principais compradores. Um deles, Charlos, dá o lance mais alto pela sereia. Luffy invade o leilão tentando salvá-la e assiste Charlos atacar e humilhar Hatchan, outro amigo do bando, homem-peixe descendente de polvos.
A objetificação de Kamy e o asco com que as pessoas tratam Hatchan criam uma atmosfera tensa de carga dramática bem pesada, considerando que são personagens bastante queridos. Por empatia, partilhamos do desejo esmurrar a cara de Charlos com a brutalidade de uma enterrada do LeBron James, mas também ficamos apreensivos porque nunca as apostas foram tão altas. Desafiar um almirante nesse ponto da história, no nível em que Luffy se encontra, é loucura, praticamente suicídio. Todos esses fatores somados tornam o soco que vem a seguir algo fortíssimo, catártico, inesquecível.
Percebam que, mesmo com todas as camadas e fatores adicionais, poderíamos simplificar a treta de Sabaody ao ponto de traçar um paralelo com o arco de Morgan, guardadas as devidas proporções. Charlos seria Helmeppo, abusando de sua ascendência para humilhar e submeter grupos mais vulneráveis. Em ambos os exemplos, atacar o esnobe filhinho de papai significa lançar um desafio à autoridade local e sofrer retaliação de uma força da Marinha. Não é demérito algum que One Piece reutilize esses arquétipos e temas justamente porque eles vão ficando cada vez mais ricos em camadas, cada vez mais maduros. Acompanhar essa evolução é uma das minhas maiores satisfações com a obra.
Foram dois exemplos em arcos bem espaçados, mas essa dinâmica que culmina no Soco Subversivo™ pode ser observada em muitos outros momentos de One Piece. Quero deixar aqui mais um, para ilustrar que esse momento na narrativa não precisa necessariamente ser um soco e o alvo não precisa ser a cara do vilão. Às vezes o soco enquanto símbolo é exatamente isso, estritamente simbólico. É o caso daquele que talvez seja um dos, se não o “soco” mais emocionante e memorável do mangá.
Em Enies Lobby, quando Spandam aponta para a bandeira do Governo Mundial e diz que ela representa a união de mais de 170 países, que ela simboliza “o mundo”, Luffy entende que ali estava o peso que oprimia a Robin a ponto de fazê-la querer desistir de viver para não ser um fardo para os seus amigos. Tenho certeza que todo mundo que ama One Piece tanto quanto eu sabe de cor o que acontece a seguir.
One Piece é uma história sobre um pirata de borracha que viaja o mundo de chinelo metendo a porrada nos outros em meio a ilhas no céu, sereias gigantes e esqueletos de black power. Também é uma história onde temas como autoritarismo, xenofobia, escravidão, revisionismo histórico e ancestralidade são abordados com uma sensibilidade rara. A forma como a obra transita entre o humor, a porradaria, o drama e as reflexões profundas sobre o mundo é um dos principais fatores que faz com que ela seja esse fenômeno de longevidade e popularidade sem precedentes.
Acredito que muito disso está resumido nas cenas em que o Luffy subverte as regras estabelecidas da sufocante realidade ao seu redor com um socão muito bem dado, metafórico ou não, na cara do opressor. Há muito mais sendo comunicado em cada Soco Subversivo™ do que um mero golpe de mangá de luta pareceria capaz de expressar, e é por isso que eles são tão marcantes.
Se o Rei dos Piratas é a figura mais livre de todo o mundo, é seu papel entrar em oposição direta a toda forma de ditadura, autoritarismo, opressão. E como estamos falando de um mangá da Shonen Jump, nada mais gratificante do que ver essa subversão sendo colocada em prática na base da porrada.
Leitura recomendada:
O anti-autoritarismo de One Piece, do ótimo Dentro da Chaminé