No dia 10 de Novembro de 2018, o Ministério de Antiguidades do Egito anunciou a descoberta de sete sarcófagos no sítio arqueológico de Sacara, ao sul da cidade do Cairo. Estimou-se que eles tinham de 4500 a 6000 anos de idade. Três desses sarcófagos eram dedicados exclusivamente a gatos domésticos. É uma das mais recentes evidências de como gatos eram cultuados como sagrados no Egito Antigo, ocupando uma posição simbólica próxima à dos faraós. Em uma sociedade tão ritualística e dependente da agricultura, bichanos foram reverenciados como guardiões divinos por serem cruciais no controle de pragas de roedores, por exemplo.
Pouco mais de 64 anos antes da descoberta dos sarcófagos, em 2 de novembro de 1954, o filme Gojira fez sua estreia nos cinemas de todo o Japão. O personagem que dá nome à obra é uma criatura enorme que surge do fundo do mar e invade Tóquio espalhando pânico e destruição. Gojira é considerado o marco zero do gênero conhecido como kaiju, ou “filme de monstrão gigante”, para os íntimos. Mais tarde, o personagem foi rebatizado no ocidente como Godzilla e é até hoje reverenciado como um dos maiores ícones da história do cinema.
Os dois eventos descritos acima, tão distintos e distantes, nunca pareceram ter qualquer relação entre si. Isso mudou no dia 12 de fevereiro de 2021, quando Super Mario 3D World foi relançado para Nintendo Switch com um conteúdo inédito, a expansão chamada Bowser’s Fury. Como se dá essa inusitada relação entre Mario, Godzilla e sarcófagos felinos? O que esse novo jogo agrega às possibilidades da série? Por que as gaivotas têm orelhas de gato? É com a nobre missão de tentar responder tais enigmas que estou aqui hoje, me lançando em uma viagem que envolve árvores peludas, vilões besuntados de petróleo e o inestimável prazer de calcular a inércia dos seus pulos em plataformas móveis.
Mas, antes de mergulhar no mundo de Bowser’s Fury, convém desenterrar um pouco da história do jogo original.
Lançado originalmente em 2013, Super Mario 3D World é um jogo fantástico que passou longe de ter todo o alcance que merecia. Cumpriu pena pelo crime inafiançável de ser um exclusivo do Wii U, um dos consoles menos populares da história da Nintendo, cujas vendas totais mundo afora não chegaram a 14 milhões de unidades. Para fins de comparação, o Clube de Regatas Flamengo tem uma torcida estimada em 40 milhões de pessoas, o que significa que se todos Wii U vendidos no mundo fossem doados à torcida flamenguista, mais da metade ainda ficaria sem. Um dado alarmante e bastante injusto com a biblioteca do console que, embora pequena, possui joias preciosíssimas que sempre mereceram melhor sorte.
Mario 3D World ficou relegado ao deserto recheado de boas ideias do Wii U por longos e gélidos 7 anos e 3 meses, período no qual teve de assistir praticamente todos os seus irmãos serem libertos e viverem o glamour de uma versão turbinada para Switch – Mario Kart 8, Pikmin 3 e Captain Toad são exemplos disso. Agora enfim chegou sua vez de receber o palco e os biscoitos que tanto merece, contando ainda com um conteúdo adicional que expande e enriquece uma experiência que já parecia muito completa em 2013. E é nesse conteúdo adicional, Bowser’s Fury, que estarão focados os esforços antropológicos de minha análise.
A trama de Bowser’s Fury traz mais perguntas do que respostas, o que a torna particularmente intrigante. Sabemos apenas que Bowser assumiu uma forma gigantesca ao ser possuído por uma espécie de petróleo das trevas (carece de fontes) e está fora de si destruindo tudo à sua volta em Lake Lapcat, um arquipélago misterioso onde absolutamente tudo tem orelhinhas de gato. O pequeno artista prodígio Bowser Jr, diante do drama vivido por seu pai, engole seu orgulho e resolve pedir ajuda ao Mario, formando assim uma Frente Ampla™ com a missão de tirar Bowser desse transe maluco e por tabela salvar o dia.
À primeira vista, tudo pode parecer simplesmente uma fusão dos controles e power-ups de 3D World com a liberdade de exploração de Super Mario Odyssey, mas aos poucos vamos percebendo que essa soma não dá conta de descrever de fato a experiência que o jogo proporciona. Me parece mais correto afirmar que o formato de fases isoladas de 3D World (ou de qualquer Mario 2D) foi rearranjado para distribuir suas ideias e obstáculos de modo mais sutil e elegante em um espaço aberto onde cada pessoa dita a ordem e o ritmo da progressão que preferir. A transição suave entre os variados desafios do jogo dá ênfase à curiosidade e à individualidade de uma maneira que distingue Bowser’s Fury não apenas do 3D World original, mas também de outros jogos da série que também focaram mais em exploração, como é o caso do Odyssey.
Explorar o mundo de Bowser’s Fury é também um trabalho arqueológico de desvendar a história por trás da sua excentricidade. Lake Lapcat, a exemplo das necrópoles do Antigo Egito, tem todo um lance de venerar de gatos como parte crucial da sua cultura. É particularmente intrigante notar que todos os inimigos e animais estão caracterizados como gatos. Peixes, gaivotas, tartarugas, a porra que for. Há também indícios nos símbolos e arquitetura das construções das ilhas que comunicam a reverência da região aos gatos e o papel deles como guardiões contra eventuais adversidades.
Esse climão meio vago e místico de civilização antiga em meio a ilhas paradisíacas contrasta fortemente com a ameaça das enormes camadas de petróleo trevoso e a silhueta espinhuda do casco gigante do Bowser que, assim como Godzilla, a qualquer momento pode despertar no oceano e começar a soltar rajadas pela boca na tentativa de destruir tudo em terra firme. O único jeito de peitar o Bowser nesse estado é com o poder de um sino especial que transforma o Mario em uma espécie de leão gigante super saiyajin de pêlos dourados, assumindo para si o papel de deidade felina guardiã do arquipélago. É nesse ponto onde o jogo bebe direto da fonte do gênero kaiju, fazendo uma reverência nada sutil aos filmes de bicho gigante como Godzilla, e aos duelos de robô gigante contra monstrão bem típicos de série Tokusatsu como Changeman.
Por ser o conteúdo adicional de um jogo maior que já estava pronto, Bowser’s Fury pode ser interpretado como um experimento curto e de baixo risco que brinca com as possíveis direções que os jogos 3D do Mario poderão seguir de agora em diante. Até aqui a maior parte dos jogos da série apresentou o espaço das fases como blocos isolados e pouco relacionados, como visto no próprio 3D World. Esses blocos são interligados como pontos em um mapa-múndi onde sua interação é basicamente escolher em qual fase entrar. Há muito potencial na maneira como Bowser’s Fury dilui o que seriam as fases de um jogo tradicional em espaços mais abertos e intercala seus desafios dentro de um espaço maior. É como se o mapa de jogos anteriores não fosse apenas um seletor de fases, mas de fato um mundo aberto para ser desvendado livremente.
Essa releitura da estrutura das fases vem acompanhada da sopa de referências culturais que se esforça em conferir à região de Lake Lapcat uma atmosfera e coesão únicas. Me remeteu bastante à Ilha Delfino de Super Mario Sunshine, que também foi relançado recentemente. A associação não me parece acidental, considerando que Sunshine também se passava em uma área tropical ameaçada por uma tinta bizarra e, mais importante, foi o jogo de estreia de Bowser Jr, que agora aparece como personagem jogável pela primeira vez na série principal. Fica como exercício de imaginação pensar em como essa abordagem diferente em exploração e construção de mundo pode ser melhor aprofundada no futuro.
Todos esses elementos combinados ajudam a criar uma experiência que vai além do que se espera do conteúdo adicional de um relançamento, ainda mais considerando outros ports de Wii U feitos pela própria Nintendo. Que Bowser’s Fury consiga reunir referências e influências tão diversas no mesmo bolo, indo de mitologia egípcia a porradaria de monstro gigante, já é um feito louvável. Mas ele faz isso ao mesmo tempo em que se esforça para trazer novidades a uma série que acaba de completar três décadas e meia de estrada.
Além de trazer o excelente Super Mario 3D World a um enorme público que não teve antes a oportunidade de jogá-lo no Wii U, esse relançamento ainda apresenta novas possibilidades de exploração para a série que podem muito bem ser – e torço para que sejam – mais exploradas nos próximos jogos da série.
Suponho que daqui a cerca de 7 mil anos, muito após a precoce extinção da humanidade, arqueólogos alienígenas encontrarão cópias de Super Mario 3D World + Bowser’s Fury e passarão a teorizar que gatos, monstros gigantes e encanadores saltando plataformas em algum momento foram centrais nas manifestações culturais da antiga vida inteligente da Terra.
Eles estarão certos.
Texto originalmente publicado em fevereiro de 2021 no START UOL