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A Voz Suprema do Blues: o Deus de Levee e o Deus de Ma
Por Marcellus Vinícius Publicado em 26 de abril de 2021
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White folk don’t understand about the blues. They hear it come out, but they don’t know how it got there.

Gertrude “MA” Rainey

Há uma porta no galpão de ensaios de um abafado estúdio de gravação em Chicago. O ano é 1927.

A porta aparentemente está sempre trancada. Ao perceber que não consegue abri-la, Levee Green, talentoso trompetista da banda de blues da cantora Ma Rainey, fica bastante incomodado. À primeira vista, seu incômodo parece vir do nada. Seu motivo não aparenta ser apenas o calor decorrente da pouca ventilação. Deve haver algo mais. Ao colocar na cabeça que aquela porta não deveria estar ali, Levee parece crer que passar por ela significaria provar um ponto.

Há alguma razão maior por trás disso?

A princípio me interessei por A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom, no original) por se tratar do último filme de Chadwick Boseman, eterno Pantera Negra e insubstituível talento do cinema recente. Intenso, versátil e devotado, parecia sempre disposto a entregar mais do que o script lhe exigia. Saber que essa foi recebida como a melhor atuação da sua carreira já bastaria pra me vender o filme de modo bem contundente.

O segundo motivo de ter ficado a fim de assistir é que gosto muito de blues. Sem ter ido atrás de mais informações a respeito, era basicamente isso que eu tinha em mente. O cálculo é simples: se tem Chadwick Boseman, tem blues e tem a estética dos anos 20,  não tem muito como dar errado. Mas ao final o saldo acabou sendo muito mais positivo: o filme entrega não apenas isso, mas também reflexões bem fortes e sensíveis sobre racismo, arte e religião. E é sobre esses pontos que quero refletir aqui com vocês.

A Voz Suprema do Blues explora as tensões raciais dos Estados Unidos dos anos 20, com atenção especial à maneira como os brancos exploram e se apropriam das manifestações artísticas das comunidades negras – no caso, o blues. Cada personagem tem sua visão particular dessa dinâmica, mas as mais marcantes são as de Ma Rainey (Viola Davis, simplesmente absurda) e Levee Green (Chadwick Boseman). É na rivalidade latente dos dois que os temas do filme florescem através do contraste, dado que pensam e agem de maneiras bastante opostas.

Levee tem o ímpeto e ambição próprios da juventude. Tão talentoso quanto impulsivo, tão carismático quanto instável. Tem uma teoria própria sobre como lidar com os brancos detentores do poder, aqui representados nas figuras de Sturdyvant, dono da gravadora, e Irvin, que agencia a carreira de Ma. Dizer sim a Sturdyvant, se mostrando afável e servil, é uma maneira de Levee conseguir o que quer – no caso, um disco gravado com composições e banda próprias. Sua confiança no sujeito, afirma ele, vai só até aí, pois, quando for um músico de sucesso como a Ma, terá o reconhecimento e respeito que merece por parte dos brancos, invertendo as relações e poder e redefinindo as regras do jogo.

Seu ego inflado não é apenas delírio. Ele de fato é extremamente talentoso e tem potencial comprovado em suas composições para voos tão altos. Seu equívoco está em crer que a sociedade lhe dará tudo isso, que seu valor como artista será reconhecido à altura por uma simples questão de mérito. Presume ser capaz de compreender os limites desse cabo de guerra com os brancos, mas está tão emocionalmente envolvido que não consegue enxergar com clareza as ilusões que lhe são vendidas.

O equívoco de Levee está em supor que as pessoas precisam dele pelo seu talento, pelo que só ele é capaz de agregar à música. Mesmo com suas traumáticas experiências passadas de racismo e violência, parece ainda carregar uma fé ingênua nas boas intenções dos figurões à sua volta, subestimando até que ponto é encarado por eles como um instrumento, talvez até menos valioso do que o trompete que toca tão bem.

Ma, por outro lado, entendeu muito bem os termos da sua relação com empresários e donos de gravadora. Não se ilude de achar que seu sucesso a fará ser mais respeitada ou aceita entre a burguesia branca ou que aquelas pessoas têm algum interesse genuíno pelo que ela tenta expressar em sua arte. Entende com doloroso realismo que o que eles querem é o dinheiro da venda dos seus discos. Então, usa sua voz como moeda de troca para inverter as relações de poder. Não em definitivo, como sonha Levee, mas apenas momentaneamente.

Eles estão pouco se lixando pra mim. Tudo o que eles querem é a minha voz. Mas eu aprendi essa lição. Então vão me tratar como quero ser tratada, não importa o quanto isso doa neles.

Ma Rainey

Levee e Ma têm teorias diferentes sobre como lidar com os brancos para os quais estão vendendo a sua arte. Mas, mais do que isso, também têm visões particulares sobre Deus e seu papel no meio de toda essa tensão. Se perguntarmos a cada um dos dois onde está Deus enquanto os negros sofrem todo tipo de opressão e disputam poder com os brancos em todos os espaços possíveis – incluindo estúdios de gravação – teremos duas respostas bem particulares que revelam muito não apenas sobre os personagens, mas sobre a perspectiva do filme em relação a esses temas.

Na visão de Levee, Deus é cúmplice dos opressores. Em uma das cenas mais fortes do filme, ele indaga, em tom de desafio e com seu punhal em mãos, onde estava Deus quando violentaram sua mãe ou quando um padre negro foi humilhado durante uma viagem humanitária. Por que um raio não caiu na cabeça dos agressores? Por que ele foi obrigado a crescer diante de tanta brutalidade? Por que nasceu já em condições tão desfavoráveis? Não consegue entender isso como outra coisa senão uma evidência de que Deus tem um favoritismo declarado e parece ter algum prazer sádico em penalizar o povo negro.

Como esperado, a resposta de Ma vai na direção oposta. Deus seria seu maior aliado na luta contra a violência e opressão, a principal prova de que não está sozinha no mundo. Mas isso é algo que só podemos ver nas entrelinhas, pois ela não se refere a Deus diretamente como Levee faz. Seu discurso mais religioso do filme está falando na verdade sobre o blues, sobre a música, sobre arte.

É o blues que preenche o vazio da existência, diz ela, se permitindo um raro momento de ternura dentro daquele estúdio. É o blues que a ajuda a se levantar da cama todos os dias sabendo que não está só. Mas Ma não canta apenas para se sentir melhor. Para ela, o blues é uma forma de entender a vida. É uma forma da própria vida – ou Deus, o universo, o Cosmos, o nome que preferir – se comunicar conosco. Há algo mais no mundo que é evidenciado através da música, como se ela traduzisse essa linguagem primordial da vida. Apesar de ser considerada a “mãe do blues”, ela diz que não o inventou. O blues sempre esteve ali, sempre existiu.

É por isso que, para Ma, os brancos não têm como entender o blues enquanto o enxergarem apenas pela sua roupagem estilosa e excêntrica, ou pela possibilidade de enriquecer através dele. E também é por isso, e não por mero preciosismo, que ela não se curva aos termos de ninguém quando se tratar de decidir de que jeito deve cantar sua música. Porque quando se entrega ao blues, Ma está em comunhão com Deus. É como se ele fosse seu maior suporte na eterna disputa de poder contra seus potenciais opressores.

Fiquei me perguntando se essa visão distinta de Deus ajuda a explicar o incômodo de Levee com a porta trancada do galpão de ensaios do estúdio. “Por que Deus colocaria essa porta aqui?”, ele deve ter se perguntado. Por que não deixá-lo passar? Faltou a ele entender que passar ou não pela porta não era o que determinava o seu valor. Que sua força não estava nas promessas vazias de homens brancos, mas na verdade transcendental da sua arte. A música era sua melhor chance de, talvez, fazer as pazes com Deus e ressignificar por si o seu lugar no mundo. O que não significaria de forma alguma o fim da luta – algo que a Ma entendeu muito bem.

Vamos fazê-lo, a certa altura, atravessar a porta e perceber que a porta não leva a lugar nenhum. Isso é o racismo nos Estados Unidos. Algo lhe é prometido. Prometem que, se fizer a coisa certa e trabalhar duro, se fizer tudo que deve fazer, atravessará a porta e tudo será possível. Mas muitas vezes, quando se atravessa a porta, há apenas um muro do outro lado.

George C. Wolfe, diretor de A Voz Suprema do Blues

Apesar das circunstâncias trágicas do personagem e da nossa realidade histórica, o que fica de inspirador para mim em A Voz Suprema do Blues é a visão sublime e aconchegante que Ma Rainey tinha da sua arte, tanto na individualidade quanto no seu papel social. Acredito que foi por uma visão similar que Chadwick Boseman se entregou tanto à sua carreira, em papeis tão emblemáticos para a representatividade negra no mundo todo.

Ver Chadwick em seu auge enquanto Ma Rainey fala sobre o blues como um meio de entender a vida é uma forma de metalinguagem.


A Voz Suprema do Blues
(Ma Rainey’s Black Bottom, 2020)

Duração: 94 minutos
Direção: George C. Wolfe
Roteiro: Ruben Santiago-Hudson
Onde assistir: Netflix

Chadwick Boseman Filmes Netflix Viola Davis


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