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The Last Guardian e a genialidade dos olhos de vidro
Por Marcellus Vinícius Publicado em 13 de abril de 2021
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It was a striking design,
akin to an eye in shape.
The beast seemed transfixed by it…

Vídeogames são capazes de despertar emoções peculiaries que são muito potencializadas pela interatividade. Hoje quero falar especificamente da emoção de constatar que um animal místico gigante renderizado em três dimensões passou a nutrir por você um enorme carinho e consideração. Ou seja, quero falar de The Last Guardian.

The Last Guardian, assim como seus dois predecessores – Ico, de 2001, e Shadow of the Colossus, de 2005 – mostra uma sensibilidade enorme para desenvolver seus temas e nuances dentro da progressão natural do jogo, sem precisar abusar de cutscene (filminho, na tradução oficial) ou diálogos roteirizados para isso. No caso, o foco temático central é o desenvolvimento do elo de amizade e cooperação entre o garoto controlado por você e a criatura conhecida como Trico. Praticamente todos os elementos do jogo favorecem a exploração dessa relação, mas quero me concentrar aqui em um específico: os olhos de vidro.

Esses olhos são vitrais coloridos que encontramos ao longo do jogo em diferentes tamanhos, posições e contextos. Seriam apenas um detalhe simpático da ambientação se não fosse por um ponto importante: Trico morre de medo deles, a ponto de ficar paralisado encarando os vitrais sem conseguir se concentrar em mais nada. Eles são barreiras para a progressão do nosso bichão emplumado, além de impedirem que ele pule ou lute adequadamente. Cabe a você, portanto, encontrar maneiras de tirar esses olhos do caminho do Trico para seguir progredindo no jogo.

Provavelmente a descrição acima não soe a você como uma ideia incrível por si só, mas sua execução dentro do contexto do jogo cumpre várias funções ao mesmo tempo para enriquecer a experiência toda – e particularmente considero elementos aparentemente simples que cumprem vários papéis algo fascinante. Quero falar um pouco sobre essas funções e como elas se somam para culminar em uma sequência memorável.

Nota: apesar de não dizer nada sobre o final ou eventos da história, a descrição da mencionada sequência pode ser considerada spoiler.

A primeira função é, obviamente, oferecer ao garoto/jogador algo que só ele pode fazer em prol do Trico – os barris de comida até têm efeito similar, mas de modo distinto. Se o Trico não tivesse nenhuma vulnerabilidade e a relação se resumisse a ele oferecendo ajuda nas impotências do menino e nunca o contrário, provavelmente nos sentiríamos uma inconveniência para o bicho, ou ele pareceria apenas um instrumento. Ver nosso guardião fragilizado nos ajuda a criar empatia, traz uma sensação de reciprocidade diante de tudo que ele faz por nós e torna mais crível e natural o desenvolvimento da relação, tanto na narrativa quanto nas mecânicas de jogo – que, em The Last Guardian, sempre caminham lado a lado.

Plantação japonesa com ornamentos que inspiraram o jogo.

Há um ponto interessante que ajuda a contextualizar essa cooperação com Trico: o visual dos olhos. Não foi uma escolha arbitrária sem qualquer contexto. Enfeites que lembram olhos são um símbolo tradicional japonês de manter corvos afastados de plantações, fazendo o papel de espantalhos. Fumito Ueda, criador da trilogia, disse em entrevista ao site Glixel que se inspirou nessas plantações para se afastar de mecanismos mais típicos da simbologia dos video games. Assim, além de fazer uma referência cultural interessante, ele ainda faz uma alusão curiosa ao visual do Trico, visto que ele é “meio pássaro” e o medo dele desses “espantalhos” parece ser instintivo.

Mesmo considerando a influência dessa referência cultural na decisão estética, é interessante observar que a direção de arte poderia ter optado por um visual mais repulsivo, para que o asco pelos vitrais fosse de algum modo compartilhado pelo jogador, mas seguiu a direção oposta. Eles são coloridos, interessantes, enigmáticos de modo até magnético. Além disso, eles não fazem nada ruim de fato contra o garoto ou contra o Trico – diferentemente das “antenas” próximas às gaiolas que conseguem tomar controle do Trico e tornam sua repulsa justificável. O jogador não tem nenhum motivo pessoal para destruir os vitrais. Por causa disso a ação tende a partir de um sentimento mais altruísta em relação ao medo do Trico, já que é apenas por ele que nos esforçamos para quebrar ou afastar os vitrais.

Outra função que esses obstáculos cumprem bem é diversificar os desafios que encontramos ao estabelecer um padrão facilmente reconhecível pelo jogador. Ao chegar em uma nova região e se deparar com os vitrais de olho pelo cenário,identificamos de cara que o objetivo é retirá-los do caminho, o que é diferente de outros desafios que se repetem, como escapar das armaduras que te agarram, procurar alavancas para abrir grades e coisas do tipo.

Esse fácil reconhecimento do que cada tipo de desafio demanda torna mais natural a associação quando os desafios começam a se combinar. Porque, por mais que The Last Guardian tenha muitos puzzles, ele nunca dá a entender que quebrar a cabeça neles é o ponto da experiência. O jogo não quer que os desafios roubem a atenção da relação com Trico, e sim que ajudem a evidenciá-la. Os olhos são os obstáculos que melhor fazem isso.

Mas talvez o feito mais impressionante desses olhos tenha sido conseguir criar uma cena forte emocionante dentro do tema principal do jogo sem precisar de qualquer diálogo ou interlúdio. Tal cena ocorre quando encontramos duas dessas armaduras inimigas barrando o progresso de Trico. Elas usam escudos com a imagem do olho e estão posicionadas de maneira a impedir o salto dele para a torre onde se encontram (imagem abaixo). Cabe ao jogador entrar na torre por baixo primeiro, sem o Trico, subir até onde as armaduras estão e derrubá-las de lá trombando nelas por trás. No entanto, outras armaduras surgem no caminho e o mais provável é que você consiga derrubar apenas uma das que estão com o escudo antes de ser agarrado pelas demais.

A essa altura do jogo, após tantas repetições, o jogador já percebe a presença dos vitrais como uma limitação inerente não apenas ao Trico, mas também ao jogo. Assim como Mega Man não pode encostar em espinhos, assim como não dá pra andar e atirar em Resident Evil 4, não se pode progredir em The Last Guardian sem tirar os olhos do caminho do Trico e ponto final. E é quando bate essa certeza de que você falhou, as armaduras te pegaram e agora só resta refazer tudo tentando de outra maneira, que o Trico quebra as regras estabelecidas e salta na direção da torre para destruir as armaduras e os olhos que lhe causam tanto pavor. Por que ele faz isso? Por você.

Naquele instante, o pavor do olho não foi maior do que o impulso de te salvar. O padrão dos olhos que você passou horas assimilando deixa de ser um limite. De repente, não parece mais apenas um elemento das regras de um jogo. A sensação que eu tive foi a de que tudo isso foi transcendido pela preocupação genuína do bichão com quem andei fazendo amizade através do meu PlayStation 4. O sentimento de que eu era correspondido à altura.

Claro que, pensando de modo puramente racional, esse é mais um “elemento do jogo”, uma sequência planejada, calculada. Mas porra, ter isso em mente não torna ainda mais fascinante? De que valem os videogames se não os encararmos de peito aberto na esperança de sermos efetivamente enganados para podermos nos jogar de cabeça nas propostas que eles nos trazem?

Há dois detalhes curiosos sobre a forma como essa cena do Trico superando o medo dos olhos foi trabalhada. O primeiro é que ela não acontece com todo mundo. É possível derrubar as duas armaduras sem ser capturado, permitindo que o Trico pule quando a barra já está limpa pra ele. Também imagino que seja possível falhar de fato e ser levado pelas armaduras sem que ele faça nada – algo que  provavelmente tem relação com o quão bem você tratou o Trico e desenvolveu o elo até aquele ponto. Eu só sei que não foi um fato isolado na minha campanha pois há outros relatos disso internet afora, inclusive um vídeo do Mark Brown sobre a mesma sequência.

O outro ponto que acho bem interessante é que essa sequência não se converte em um novo padrão. Ela não é um “upgrade” do Trico. Posteriormente novos olhos surgirão no caminho, a maioria em situações menos extremas, e ele ficará paralisado de novo, dependendo do seu esforço para liberar o caminho. Isso torna o momento passado de impulso e superação dele mais único e especial, e ajuda a evidenciar como aquilo pode ter sido difícil na subjetividade da nossa estimada pseudo-quimera gigante em alta definição.

Devo confessar que fico um pouco desanimado quando as pessoas param para refletir sobre um jogo e se concentram demais em quedas de framerate, “controles datados” ou problemas com a câmera, como foi tão comum nas análises de The Last Guardian. É evidente que essas coisas podem (e até devem, dependendo da abordagem) ser trazidas à tona, mas o foco exagerado nesses aspectos pode prejudicar o debate de nuances e ideias tão interessantes quanto essa. Os números e jargões saturados do Metacritics acabam fazendo mais barulho do que o crivo para absorver o que pode haver de valioso dentro de cada experiência.

The Last Guardian é um jogo incrível por conseguir fazer todos os seus elementos girarem em torno de um conceito, uma mensagem, um comentário. Do começo ao fim, tudo no jogo impulsiona o sentimento de empatia, cooperação e amizade entre o jogador e Trico. Os olhos de vidro são uma das maiores evidências disso.

Fumito Ueda Playstation 4 Team Ico


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